domingo, setembro 25, 2011

20 anos “still alive” e a contar - 'Pearl Jam Twenty' review





Seattle, final dos anos 80. Sob um espectro VHS granulado e sonoro, ‘Twenty’ abre com a formação de outra banda, os Mother Love Bone, que estava em ascensão na cidade – uma banda promissora com um frontman carismático (Andy Wood) cujas personalidade e voz fariam um bar às moscas parecer um estádio cheio em dia de concerto. No caldeirão que, para críticos, já continha a receita do sucesso, estavam também a fermentar o guitarrista Stone Gossard e o baixista Jeff Ament – a parceria que já havia criado o protótipo grunge (expressão que Stone evita proferir) Green River e que, após a morte de Andy Wood por overdose de heroína, viria a juntar os Pearl Jam.
Recuamos pois ao fenómeno de Seattle, aos cabelos compridos desgrenhados e às camisas de flanela, mas, antes de mais, ao surgimento de um rock melódico e eclético com espaço para o improviso, saído das garagens de uma cidade cinzenta e chuvosa onde os jovens encontravam guarida e, simultaneamente, davam vazão à sua energia criativa.
Com uma câmara na mão, Stone e Jeff, muito jovens e sem imaginarem o que lhes reservava o futuro, filmam a entrada de um clube underground de Seattle; um diálogo pacífico mas premonitório com a polícia e o encontro com a já celebridade da cena local, o vocalista Chris Cornell. Do sarcasmo pós-adolescente de Stone à natureza das relações pessoais da banda, tudo começa a perpassar nos primeiros minutos do filme, dedicado em boa parte ao período anterior a 2000, especialmente interessante não apenas pelo brotar do apelidado movimento grunge, mas também pela fase preliminar da vida da banda, desde logo conturbada, mas com muitas imagens inéditas, precisas e raras por mostrar ao mundo, sucedendo-se cenas de arquivo notáveis umas atrás das outras.
A morte de Andy Wood, vista pelos músicos como o pior momento da banda, transforma-se em homenagem sentida – a primeira de ‘Twenty’. Chris Cornell, então vocalista dos Soundgarden, considera-a mesmo “a morte da inocência” da cena de Seattle, anterior ao suicídio de Kurt Cobain, também homenageado pelos Pearl Jam, um pouco adiante. Num cenário onde tantas bandas memoráveis caíram em desgraça prematuramente, o realizador Cameron Crowe começa por mostrar que os Pearl Jam nasceram de uma tragédia (a morte de Andy Wood) e permanecem juntos há 20 anos.
Ao nosso lado no cinema, a assistir à ante-estreia, estava o guitarrista Zé Pedro, dos Xutos & Pontapés, que em 2002 foi mesmo à sala de ensaios, em Seattle, entrevistar os Pearl Jam. “Fiquei com uma Polaroid tirada pelo Eddie Vedder de nós os dois”, acrescenta, no final, o guitarrista português consagrado nos Xutos, experimentando pontos de amplificação e sentimentos próximos aos reflectidos no filme: “O incrível na história dos Pearl Jam e em bandas que duram muito tempo é a maneira como se dá a volta a situações más e a forma como viram as carreiras quando as coisas chegam a becos sem saída; é a capacidade de uma banda não se desmembrar e seguir em frente; mudar e saltar para outro nível. Isso e a sinceridade como falaram; a forma como se ligam aos fãs e respeitam os outros músicos - Kurt Cobain, Andy Wood, Neil Young ou The Who – foi o que mais me tocou. Esse respeito faz parte dos alicerces de uma banda de rock.” Para Zé Pedro, os Pearl Jam estão “no topo do ranking”, na certeza de que “bandas que aguentam tantas coisas más e sobrevivem tornam-se muito grandes”.
E começa a viagem emocional, após a morte de Andy, semanas antes de os Mother Love Bone lançarem o seu primeiro disco, ‘Apple’; o vazio deixado; a reunião de Stone com o guitarrista Mike McCready e a voz memorável que veio numa cassette de San Diego, Califórnia, a mais de dois mil quilómetros. Eddie Vedder entra então em cena a desfiar as primeiras memórias e as gravações feitas depois de um dia de surf. “Isto é um tipo real?”, questiona-se Mike, espantado com as maquetas enviadas por Eddie. De facto, na conferência de imprensa de apresentação do documentário, em Toronto, Cameron Crowe perguntou a Vedder o que tinha ele pensado no avião, a caminho de Seattle. "Pensei: estou num avião. Quem são estes gajos que têm dinheiro para um bilhete de avião? E depois pensei: não fodas isto. Tinha estado em algumas bandas e a música nunca soou a uma coisa real; era sempre derivada de outra coisa qualquer. Nunca tinha ouvido nada como a demo que eles me enviaram", respondeu Vedder.
Seguem-se imagens dos primeiros ensaios na cave onde nasce ‘Ten’ e, ao sexto dia de ensaios consecutivos após a chegada de Eddie, do primeiro concerto de originais. Clarifica-se a história da paternidade omissa de Eddie, que inspirou a canção ‘Release’, até que surge o parceiro de casa de Andy Wood, Chris Cornell, a propósito do disco de homenagem da superbanda Temple of the Dog, que reúne o que viria a ser a formação actual dos Pearl Jam com Cornell, incluindo, claro, o baterista Matt Cameron, então nos Soundgarden. Da relação inspiradora de Vedder e Cornell, que ajudou o primeiro a ganhar confiança; afirmar-se e perder a timidez demasiado autoconsciente que o caracteriza, chegamos ao nome Pearl Jam, após a recusa do basquetebolista Mookie Blaylock em emprestar o nome à banda, e ficamos a saber que o álbum ‘Ten’ deve o título ao número da camisola de Mookie.
Os Pearl Jam ascendem rapidamente de clubes para plateias de 60 mil pessoas. Assistimos ao espanto de Vedder nos bastidores e ao deslumbramento do público com o concerto no programa MTV Unplugged – um momento-chave para a banda. A influência determinante dos The Who para Eddie e a sensibilidade punk do grupo; os vídeos, os conceitos; o porquê e o como de ‘Jeremy’ e eis que chegamos à escalada de adrenalina de Vedder, pendurado a dez metros de altura sobre a multidão, à procura de rasgar um pouco mais a cortina do perigo, saltando sobre a morte, destemido, para surfar o público, no entanto com um ar messiânico e sereno que o fazia parecer estar acima das preocupações quotidianas do comum mortal.
Passando pelo filme ‘Singles’ e pela sua festa desastrosa ou por imagens do processo de construção de ‘Daughter’, ainda com letra improvisada, entre Vedder e Gossard, sentados à volta de uma mesa no interior de um autocarro da banda, Crowe explora, como verdadeiro discípulo, cada recanto da viagem que levou os Pearl Jam à fama mundial, à capa da revista Time (contra o desejo da banda) e aos tops das tabelas da Billboard ao longo dos anos ‘90.
O fenómeno grunge parecia, a certo ponto, dividir um reinado entre Pearl Jam e Nirvana sob o pano de fundo de um punhado de bandas espantosas oriundas da mesma cidade. A sugestão de Kurt Cobain de que os Pearl Jam eram demasiado mainstream feriu o grupo, mas o documentário rapidamente mostra Cobain a retirar os comentários desagradáveis, seguindo-se um dos pedaços de fita mais valiosos e humanos do filme: Vedder e Cobain dançam juntos um slow, alegremente, nos bastidores dos MTV Video Music Awards de 1992, enquanto Eric Clapton toca em palco ‘Tears in Heaven’.
Em 1994, Kurt Cobain suicida-se e a sua morte foi um dos factores que mais contribuiu para que os Pearl Jam cortassem com os media. Stone Gossard admite: "Ele fez-nos pensar em tudo o que fazíamos.” Do descontrolo dos fãs aos problemas que advieram do crescimento desmedido e da transformação de um movimento que cortava com a moda e com a máquina para se tornar exactamente naquilo que abominava, surge a pergunta de Eddie, que passou a resguardar-se também nas letras, levantando mesmo um muro à volta da sua casa, e não apenas pela privacidade: “Estas pessoas amam-te tanto que te querem matar. Como é que me relaciono com qualquer uma delas, do ponto onde estou?”
Vedder, que se tornara o membro mais reconhecível pelas multidões, gostava de ter uma banda sem rosto, como os Pink Floyd: “A maneira como as pessoas nos vêem muda, e isso não está nas minhas mãos. O que talvez esteja sob o meu controlo é não dar entrevistas, não aparecer na TV e não fazer nada que glofique o meu rosto ou posição.” Já Stone afirma que os cinco quiseram ser uma banda como os Led Zeppelin, versátil e inesperada, que não estivesse presa a um estilo ou género. Eddie e Stone, os dois principais autores da banda, capitanearam-na em momentos distintos. Segundo Mike, houve duas fases de poder e de criação: a primeira liderada por Stone e, agora, a segunda por Eddie.
Após o “namoro” com o guru Neil Young, tempo para o capítulo da batalha legal contra o monopólio da Ticketmaster, cujo desfecho levou uma geração de bandas a reconsiderar as formas de fazer negócio, concluído com o recado ‘This is Not For You’. A narrativa sustenta a ideia de uma banda no contínuo alcance de uma ética conscienciosa, procurando manter a honestidade e a integridade numa indústria que não facilita.
O filme prossegue com uma aproximação mais pessoal aos músicos, começando pelo desprendimento material de Stone quanto a artigos e objectos de memorabilia da banda, por oposição a Jeff, que guarda tudo o que respeita ao percurso dos Pearl Jam. Stone, que conhecia Mike desde o 7.º ano da escola, apareceu de novo para resgatar aquele guitarrista espiritual que canaliza pela guitarra ondas espasmódicas que elevam os espíritos da banda.
É depois contada em fast forward bem-humorado a saga dos cinco bateristas e o regresso à forma pré-inicial e ao predestinado para o cargo: Matt Cameron, que estivera no primeiro disco que os Pearl Jam gravaram, ‘Temple of the Dog’, com Chris Cornell, antes do sucesso e do álbum ‘Ten’.
Hoje pais de família e com uma dose de impulsividade mais controlada e responsável, os Pearl Jam vêem o álbum Binaural como o ponto mais baixo da banda, com a perda momentânea de algum mediatismo e sucesso comercial. Sucede-se a tragédia em Roskilde, Dinamarca, onde, num concerto da banda ao ar livre, morreram nove pessoas na frente do palco - uma experiência chocante que os levou a ponderar o término da carreira. “Há um antes e um depois de Roskilde. O que vamos fazer para ajudar as famílias? O que fazemos para sobreviver?”, pergunta Eddie. Os temas do uso da liberdade de expressão e da consciência social ganham momentum num concerto, aquando das críticas a Bush, em ‘Bushleaguer’, devolvidas com apupos de parte do público norte-americano, numa noite em que a banda receou não sair do local pacificamente.
Perante a espontaneidade e os alinhamentos imprevisíveis de Eddie, por oposição ao desejo de Stone de arrasar as plateias a tocar êxitos do princípio ao fim, ouvimos ‘Walk With Me’ antes da ficha técnica ao som de ‘Just Breathe’. Desta feita, Mike não beijou de boa noite a plateia com ‘Yellow Ledbetter’ e, quanto a nós, faltou talvez conhecer um pouco do percurso musical de Vedder antes da ida para Seattle.
Para os fãs indefectíveis da banda – que os há, e muitos! -, esta crónica fílmica inevitavelmente parcial em torno do surgimento da banda na chuvosa Seattle proporciona um longo, crescente e contínuo clímax de apreço. Para o observador distanciado que apenas vê nos Pearl Jam uma grande banda que encontrou o seu espaço e ali ficou, sem evolução sónica que se destaque pelo caminho, então o documentário de Cameron poderá parecer um pouco auto-indulgente, repetitivo ou chato. Mas com a sua intimidade e som pungente, a Verdade de ‘Pearl Jam Twenty’ traduz-se em quase duas horas de prazer e pele de galinha passadas a redescobrir a banda. Pode não converter não-fãs, mas também não está a tentar fazê-lo.

Por Hugo Simões


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